segunda-feira, 17 de abril de 2017

CONTO - A REFORMA - JORGE MOTTA

 A REFORMA

A conversa telefônica ia em meio, às duas e trinta da madrugada.

Conversa entre duas pessoas que batera todos os recordes mundiais. Mais de dez anos, telefonemas que duraram horas e horas.

Havia pela manhã, à tarde e nas noites prolongavam-se até o amanhecer. Todos os assuntos eram dissecados minuciosamente: Infâncias, vida de ambos, juventude, alegrias e sofrimentos, literatura, pintura, música, arquitetura, cinema, odontologia. Tinha mais arte que o canal Arte 1

Era nessa fonte de assuntos, que ela lhe fornecera vários Leitmotifs para vários contos (ele era contista) que se projetaram mundo afora:

A tentação (a oficina da chacina do carro); A árvore (árvore que cai não cai em frente à casa), Xana (cadelinha fujona, inteligente e rebelde), etc, etc. , etc...

Naquela noite, a certa altura, a conversa caiu em literatura:

- Sabes, Lentilhinha, depois de escrever centenas de contos, vou me alongar um pouco mais, vou escrever uma pequena novela.

Lentilhinha Dourada: - Novela? Qual o título?

Jorge - Bem, a revista da Unisinos me solicitou algumas passagens da vida da Maria Degolada. 

Não as burocráticas, com datas, moradias, trabalhos que se encontram em qualquer arquivo público. 

Querem o que não se encontra nos prontuários. O que os olhos não vêm, os sentimentos, as dores, os sofrimentos, o ardor das paixões, os prazeres, os delírios insondáveis, os sonhos, as desilusões, enfim querem, não a pessoa, mas, a personagem Maria Degolada. 

Bem, em alguns contos, algo disto aparece. Mas, creio que é pouco para a magnitude da figura. 

Vou tentar condensar tudo isto numa novela, que será só dela.

Lentilhinha  - Mas qual será o titulo?

Jorge – Tragédia e imortalidade da mais sublime das Marias. Obra de ficção,

Lentilhinha (voz algo irritada, peremptória): 

Não podes fazer isto. Maria Degolada é uma figura real. Não se pode escrever ficção sobre uma figura real!!!!! (e ponto final) toiiiiinnng ......

Jorge, nocauteado, foi dormir. Retardado no raciocínio polêmico, foi deitar pensando: 

- É, de fato, ela tem razão. A “fessora” Lentilhinha falou, tá falado. Não tem discussão!

Enquanto isto, nessa mesma noite, no Olimpo dos Deuses da Literatura, foi convocada uma reunião de emergência por seu Presidente de Honra, Liev Tolstoi. 

Sentado na cadeira da ampla mesa redonda, ele falou aos demais imortais, dentre eles, Victor Hugo, Hawthorne, Gogol, Balzac, Allan Poe, Dickens, Zola, Fitzgerald, Maupassant, Cervantes, Maugham, Vergílio, Dostoievski, Shakespeare e dezenas de gênios literários.

- Senhores, depois de séculos de glórias imortais a nós concedidas por nossos semelhantes, unanimemente, pelo valor de nossas obras, tudo isto acha-se ameaçado pela primeira vez. 

Pois nesta madrugada, precisamente às 02h30min, captamos vindo diretamente do Morro da Maria Degolada, por uma voz maviosa como a de um anjo, a seguinte frase:  
- Não se pode escrever ficção sobre uma pessoa real!  

Um oh de incredibilidade percorreu o auditório.

Tolstoi continuou: - Senhores! Pensai bem, isto é uma sentença de morte para nós, é pior do que a Reforma de Lutero foi para a Igreja Católica, pois reduz à moeda sem valor tudo o que criamos. 

É a Reforma da Literatura, que proíbe a junção, que prega a separação total da ficção literária da realidade. Ora, isto é como propor a separação de xipófagos, ambos morrem!!

- Essa Reforma é impossível de ser aprovada! Gritou o rebelde Oscar Wilde.

Tolstoi respondeu: - Ora, Oscar, o impossível não existe quando se trata de perseguir escritores e poetas; já esqueceste Canterville? E o grande Lorca, esqueceu o garrote do Franco?  Lorca, com cara de sofrimento, afaga a nuca.

- E depois, senhores - prosseguiu Tolstoi - não nos esqueçamos de que essa sementinha está sendo plantada no Brasil, reino dos políticos, e que essa moça é amiga de Maria do Relicário e Luciana Sogro, ambas senhoras super influentes no Senado Brasileiro, e neste passa até elefante com duas trombas.

- E também não se esqueçam de que, sendo Reforma, nem que seja de um galinheiro, Temer aprova. E se passa no Brasil, passa em toda a América Latina. Vargas Llosa, Garcia Marquez, Jorge Luís Borges, Galeano gemem de dor. 

Mais gemidos lancinantes lançam aos céus, os norte-americanos Allan Poe, Graham Greene, Mark Twain, Hemingway, Fitzgerald, Faulkner, ao anteverem com que prazer sádico e riso tresloucado, o grande lou(c)ro Drump assinará a sentença de morte e anulação de seus livros.


Pelas quatro da manhã, Jorge sonhava, como sempre, estar voltando à sua Vila Mapa, quando seu sonho foi interrompido por gritos vindos da calçada de seu edifício. 

- Manifestantes? Protestos? A esta hora? 

Os chavões: Fora reforma! Abaixo a reforma! Não à reforma!!

Jorge pensou: - Será que eles acham que o Temer mora aqui?

Abrindo a janela, deparou com dezenas de caras que já viu em algum lugar! De onde será? 

À frente de todos, com imensa barba branca, alguém que parecia Tolstoi gritou: 

- Eu estava na cabine do maquinista quando a Ana (Karenina) se atirou em baixo dos trilhos. Ela não é real?

A seu lado, Victor Hugo disse: 

- Fui padrinho de batismo de Quasimodo e dancei a valsa de 15 anos com Esmeralda, agora dizem que não se pode fazer ficção com seres reais?  Estão de brincadeira!!!

Hawthorne gritou: 

- A mansão de 7 cumieiras ficava em frente à minha casa, em Salém.

José de Alencar protestou: 

- Fui padrinho de casamento de Peri e Ceci. 

Fitzgerald: - O “grande Gatzby”  sou eu!

Alexandre Dumas Filho: 

- A “Dama das Camélias” era minha noiva, Marie Duplessis, cortezã que me amou, me deixou por causa  da minha família, e morreu de tuberculose com uma Camélia na mão, em meus braços.

Finalmente, o mais indignado era o sanguinário, Prosper Merimée: 

- Fui amante da cigana Carmem que, por causa do amor à Música, trocou-me pelo Bizet (“Carmem”, de Bizet). Por isto, mandei José matá-la no centro da Plaza de Toros. Se ela não é real, quem será? Papai Noel? 
         

       Tolstoi retorna a falar: 

       - Contista Jorge - Se esta reforma for aprovada, todos os romances, contos e novelas baseados em seres reais, serão considerados fora da lei, ilegais. 

Serão proibidos, perseguidos, queimados na fogueira, como as “Bruxas de Salém”. Junto com elas, nossa imortalidade terá fim. 

Se a perda da vida (morte) é dolorosa, imagine-se a da imortalidade! Que o digam Homero e Virgílio!

Jorge: - Meus caros gênios, corta meu coração sua iminente desdita, mas que posso fazer? Eu, um contista temporão, que comecei a escrever modestos contos, aos 60 anos?

Hemingway completa: 

- Quem já ganhou troféus em 3 países?
        
   Tolstoi: - Sois nossa última esperança, pois ninguém conhece Lentilhinha Dourada, desde antes de nascer, dia por dia, hora por hora, como vós!

Jorge: - Sim, é a mais doce e meiga das criaturas que já brotou no morro da Glória. 
Tem uma voz que me leva aos páramos mais altos do Firmamento. Mas, em compensação, é também a mulher mais teimosa que já houve. Quando embirra com alguma coisa nem Deus nem o diabo fazem-na voltar atrás. Eu que o diga. É irreversível! 
Quem sou eu, um modesto contista, que escreveu duas dezenas de contos sobre ela, premiados mundo afora, que a imortalizarão por séculos? 
Dela consigo tudo, menos que volte atrás.  Em 1971, soube disto como ninguém. Sinto muito, mas não posso ajudá-los.

Quando todos, cabisbaixos, tristes, iam se retirar, aterrisou na Ipiranga um taxi aéreo, e dele, correndo, surgiu um indivíduo que nada tinha de aura de gênio, era uma figura de homem comum.

Ofegante e correndo, ele gritou jubiloso: 

- Felizmente cheguei a tempo, desculpem-me, gênios! 
É quase uma heresia estar entre vós. Sou, apenas, um escritor comum, mas tenho a chave de salvação de vossas imortalidades.
- Bravo, gritou Hemingway, e deu um tiro para o alto com a espingarda com que um dia se suicidou, em 1960.

Olhando para a sacada, para o morador, o novo participante continuou:

- Estava vendo câmeras de monitoramento, quando captei este acontecimento. Meu caro Jorge: 

Apesar da idade, permaneces ingênuo como um menino de 8 anos! Desde que nasceste, ao conheceres Lentilhinha,  teu coração é uma porta aberta, maior que a do Vicente Celestino, a clamar por cada buraquinho desta porta: 

“Amo Lentilhinha; Adoro  Lentilhinha; 
Te voglio bene, Lentilhinha; Te quiero, Lentilhinha”

Mas, ao mesmo tempo, não a compreendes e não consegues fazê-la voltar atrás, mas eu, que apenas a conheço de vista, tenho a chave do problema. 

Sou como ela, fanático por animais, especialmente cachorros, chamo-me Carlos  Heitor Cony.
        
  Um dia, ao desembarcar em Porto Alegre, só por eu ter escrito um livro sobre cachorros, ela foi ao aeroporto, beijou-me a mão e disse: 

 - Este seu livro será minha bíblia! 

 Confesso, emocionado, correram-me lágrimas.

Então, querendo retribuir, disse-lhe: 

- Minha meiga menina, qual o maior sonho de tua vida, que não conseguiste realizar? Diga-me e eu, transformando-me num mágico, conseguirei que ele “cames true” (torne-se verdade); ela enrubesceu, e me disse: 

- Tenho um, há mais de 10 anos, mas nunca contei a ninguém: 

- Sonho dia e noite com o cachorrinho mais lindo que jamais existiu, ele é negro, como azeviche, tem quatro bolinhas brancas no corpo, os olhos são tristes e sonhadores, e vive olhando para as estrelas, talvez procurando a amada que perdeu há mil anos num baile de carnaval. Seu nome é PIERROT. 

Era do Jorge, mas, infelizmente, por questão de Condomínio, ele deu para uma amiga chamada Rainha; foi o dia mais triste de minha vida, pois daria tudo no mundo para ter aquele cachorrinho divino morando em minha casa, comigo para sempre!

Voltando-se para a multidão, Cony gritou: 

- Entenderam? Dando-lhe  Pierrot, ela desistiu da reforma. Todas as imortalidades de vocês estarão preservadas, e eu, aos olhos de Lentilhinha, serei maior do que o mágico de Oz, e ganharei outro beijo!  Onde fica a mansão da Rainha?
        
   Jorge deu-lhe o endereço. E a multidão gritando mais que a torcida do Internacional, correu em massa para a mansão da Rainha, na Vicente da Fontoura, aos berros de: Pierrot! Pierrot! Pierrot!

Jorge, solitário na sacada, pensava: - Felizes Gênios, feliz Lentilhinha!

Mas uma sombra triste escureceu-lhe o rosto ao pensar:


- Pobre Rainha, nenhuma mulher ama mais cachorrinhos do que ela. Sobreviverá à perda de seu amado PIERROT?       

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