A REFORMA
A
conversa telefônica ia em meio, às duas e trinta da madrugada.
Conversa
entre duas pessoas que batera todos os recordes mundiais. Mais de dez anos, telefonemas
que duraram horas e horas.
Havia
pela manhã, à tarde e nas noites prolongavam-se até o amanhecer. Todos os
assuntos eram dissecados minuciosamente: Infâncias, vida de ambos, juventude,
alegrias e sofrimentos, literatura, pintura, música, arquitetura, cinema, odontologia.
Tinha mais arte que o canal Arte 1.
Era nessa fonte de assuntos, que ela lhe fornecera vários Leitmotifs para vários contos (ele era contista) que se projetaram
mundo afora:
A tentação (a
oficina da chacina do carro); A árvore
(árvore que cai não cai em frente à casa), Xana
(cadelinha fujona, inteligente e rebelde), etc, etc. , etc...
Naquela
noite, a certa altura, a conversa caiu em literatura:
- Sabes, Lentilhinha, depois de escrever
centenas de contos, vou me alongar um pouco mais, vou escrever uma pequena
novela.
Lentilhinha
Dourada: - Novela? Qual o título?
Jorge
- Bem, a revista da Unisinos me solicitou
algumas passagens da vida da Maria Degolada.
Não as burocráticas, com datas,
moradias, trabalhos que se encontram em qualquer arquivo público.
Querem o que
não se encontra nos prontuários. O que os olhos não vêm, os sentimentos, as
dores, os sofrimentos, o ardor das paixões, os prazeres, os delírios insondáveis,
os sonhos, as desilusões, enfim querem, não a pessoa, mas, a personagem Maria Degolada.
Bem, em alguns contos, algo disto aparece. Mas, creio que é pouco para a magnitude
da figura.
Vou tentar condensar tudo isto numa novela, que será só dela.
Lentilhinha - Mas qual
será o titulo?
Jorge
– Tragédia e imortalidade da mais sublime
das Marias. Obra de ficção,
Lentilhinha
(voz algo irritada, peremptória):
Não
podes fazer isto. Maria Degolada é uma figura real. Não se pode escrever ficção
sobre uma figura real!!!!! (e ponto final) toiiiiinnng ......
Jorge,
nocauteado, foi dormir. Retardado no raciocínio polêmico, foi deitar pensando:
- É, de fato, ela tem razão. A “fessora”
Lentilhinha falou, tá falado. Não tem discussão!
Enquanto
isto, nessa mesma noite, no Olimpo dos Deuses da Literatura, foi convocada uma
reunião de emergência por seu Presidente de Honra, Liev Tolstoi.
Sentado na
cadeira da ampla mesa redonda, ele falou aos demais imortais, dentre eles, Victor
Hugo, Hawthorne, Gogol, Balzac, Allan Poe, Dickens, Zola, Fitzgerald, Maupassant,
Cervantes, Maugham, Vergílio, Dostoievski, Shakespeare e dezenas de gênios
literários.
- Senhores, depois de séculos de glórias
imortais a nós concedidas por nossos semelhantes, unanimemente, pelo valor de
nossas obras, tudo isto acha-se ameaçado pela primeira vez.
Pois nesta madrugada, precisamente às 02h30min,
captamos vindo diretamente do Morro da Maria Degolada, por uma voz maviosa como
a de um anjo, a seguinte frase:
- Não se
pode escrever ficção sobre uma pessoa real!
Um oh de incredibilidade percorreu o
auditório.
Tolstoi
continuou: - Senhores! Pensai bem, isto é
uma sentença de morte para nós, é pior do que a Reforma de Lutero foi para a Igreja
Católica, pois reduz à moeda sem valor tudo o que criamos.
É a Reforma da Literatura,
que proíbe a junção, que prega a separação total da ficção literária da realidade.
Ora, isto é como propor a separação de xipófagos, ambos morrem!!
- Essa Reforma é impossível de ser aprovada!
Gritou o rebelde Oscar Wilde.
Tolstoi
respondeu: - Ora, Oscar, o impossível não
existe quando se trata de perseguir escritores e poetas; já esqueceste
Canterville? E o grande Lorca, esqueceu o garrote do Franco? Lorca, com cara de sofrimento, afaga a nuca.
- E depois, senhores - prosseguiu Tolstoi
- não nos esqueçamos de que essa
sementinha está sendo plantada no Brasil, reino dos políticos, e que essa moça é
amiga de Maria do Relicário e Luciana Sogro, ambas senhoras super influentes no
Senado Brasileiro, e neste passa até elefante com duas trombas.
- E
também não se esqueçam de que, sendo Reforma, nem que seja de um galinheiro, Temer
aprova. E se passa no Brasil, passa em toda a América Latina. Vargas Llosa,
Garcia Marquez, Jorge Luís Borges, Galeano gemem de dor.
Mais gemidos
lancinantes lançam aos céus, os norte-americanos Allan Poe, Graham Greene, Mark
Twain, Hemingway, Fitzgerald, Faulkner, ao anteverem com que prazer sádico e
riso tresloucado, o grande lou(c)ro Drump assinará a sentença de morte e
anulação de seus livros.
Pelas
quatro da manhã, Jorge sonhava, como sempre, estar voltando à sua Vila Mapa,
quando seu sonho foi interrompido por gritos vindos da calçada de seu edifício.
- Manifestantes? Protestos? A esta hora?
Os
chavões: Fora reforma! Abaixo a reforma! Não à reforma!!
Jorge
pensou: - Será que eles acham que o Temer
mora aqui?
Abrindo a janela, deparou com dezenas de caras que já viu
em algum lugar! De onde será?
À frente de todos, com imensa barba branca,
alguém que parecia Tolstoi gritou:
- Eu
estava na cabine do maquinista quando a Ana (Karenina) se atirou em baixo dos
trilhos. Ela não é real?
A seu
lado, Victor Hugo disse:
- Fui padrinho
de batismo de Quasimodo e dancei a valsa de 15 anos com Esmeralda, agora dizem
que não se pode fazer ficção com seres reais? Estão de brincadeira!!!
Hawthorne
gritou:
- A mansão de 7 cumieiras ficava
em frente à minha casa, em Salém.
José de Alencar protestou:
- Fui padrinho de casamento de Peri e Ceci.
Fitzgerald: - O “grande Gatzby” sou eu!
Alexandre
Dumas Filho:
- A “Dama das Camélias” era
minha noiva, Marie Duplessis, cortezã que me amou, me deixou por causa da minha família, e morreu de tuberculose com
uma Camélia na mão, em meus braços.
Finalmente,
o mais indignado era o sanguinário, Prosper Merimée:
- Fui amante da cigana Carmem que, por causa do amor à Música, trocou-me
pelo Bizet (“Carmem”, de Bizet). Por isto, mandei José matá-la no centro da
Plaza de Toros. Se ela não é real, quem será? Papai Noel?
Tolstoi retorna a falar:
- Contista Jorge - Se esta reforma for aprovada,
todos os romances, contos e novelas baseados em seres reais, serão considerados
fora da lei, ilegais.
Serão proibidos, perseguidos, queimados na fogueira, como
as “Bruxas de Salém”. Junto com elas, nossa imortalidade terá fim.
Se a perda
da vida (morte) é dolorosa, imagine-se a da imortalidade! Que o digam Homero e
Virgílio!
Jorge:
- Meus caros gênios, corta meu coração sua
iminente desdita, mas que posso fazer? Eu, um contista temporão, que comecei a
escrever modestos contos, aos 60 anos?
Hemingway
completa:
- Quem já ganhou troféus em 3
países?
Tolstoi:
- Sois nossa última esperança, pois
ninguém conhece Lentilhinha Dourada, desde antes de nascer, dia por dia, hora
por hora, como vós!
Jorge:
- Sim, é a mais doce e meiga das criaturas
que já brotou no morro da Glória.
Tem uma voz que me leva aos páramos mais
altos do Firmamento. Mas, em compensação, é também a mulher mais teimosa que já
houve. Quando embirra com alguma coisa nem Deus nem o diabo fazem-na voltar atrás.
Eu que o diga. É irreversível!
Quem sou eu, um modesto contista, que escreveu
duas dezenas de contos sobre ela, premiados mundo afora, que a imortalizarão
por séculos?
Dela consigo tudo, menos que volte atrás. Em 1971, soube disto como ninguém. Sinto
muito, mas não posso ajudá-los.
Quando
todos, cabisbaixos, tristes, iam se retirar, aterrisou na Ipiranga um taxi
aéreo, e dele, correndo, surgiu um indivíduo que nada tinha de aura de gênio,
era uma figura de homem comum.
Ofegante
e correndo, ele gritou jubiloso:
- Felizmente cheguei a tempo, desculpem-me, gênios!
É quase uma heresia estar entre vós. Sou, apenas, um escritor comum, mas tenho
a chave de salvação de vossas imortalidades.
- Bravo, gritou
Hemingway, e deu um tiro para o alto com a espingarda com que um dia se suicidou,
em 1960.
Olhando
para a sacada, para o morador, o novo participante continuou:
- Estava vendo câmeras de monitoramento, quando
captei este acontecimento. Meu caro Jorge:
Apesar da idade, permaneces ingênuo
como um menino de 8 anos! Desde que nasceste, ao conheceres Lentilhinha, teu coração é uma porta aberta, maior que a do
Vicente Celestino, a clamar por cada buraquinho desta porta:
- “Amo Lentilhinha;
Adoro Lentilhinha;
Te voglio bene, Lentilhinha; Te
quiero, Lentilhinha”
Mas,
ao mesmo tempo, não a compreendes e não consegues fazê-la voltar atrás, mas eu,
que apenas a conheço de vista, tenho a chave do problema.
Sou como ela,
fanático por animais, especialmente cachorros, chamo-me Carlos Heitor Cony.
Um
dia, ao desembarcar em Porto Alegre, só por eu ter escrito um livro sobre
cachorros, ela foi ao aeroporto, beijou-me a mão e disse:
- Este seu livro será minha bíblia!
Confesso, emocionado, correram-me lágrimas.
Então,
querendo retribuir, disse-lhe:
- Minha
meiga menina, qual o maior sonho de tua vida, que não conseguiste realizar?
Diga-me e eu, transformando-me num mágico,
conseguirei que ele “cames true” (torne-se verdade); ela enrubesceu, e me
disse:
- Tenho um, há mais de 10 anos, mas nunca contei a ninguém:
- Sonho dia
e noite com o cachorrinho mais lindo que jamais existiu, ele é negro, como
azeviche, tem quatro bolinhas brancas no corpo, os olhos são tristes e
sonhadores, e vive olhando para as estrelas, talvez procurando a amada que
perdeu há mil anos num baile de carnaval. Seu nome é PIERROT.
Era do Jorge,
mas, infelizmente, por questão de Condomínio, ele deu para uma amiga chamada
Rainha; foi o dia mais triste de minha vida, pois daria tudo no mundo para ter
aquele cachorrinho divino morando em minha casa, comigo para sempre!
Voltando-se
para a multidão, Cony gritou:
- Entenderam?
Dando-lhe Pierrot, ela desistiu da
reforma. Todas as imortalidades de vocês estarão preservadas, e eu, aos olhos
de Lentilhinha, serei maior do que o mágico de Oz, e ganharei outro beijo! Onde fica a mansão da Rainha?
Jorge deu-lhe o endereço. E a multidão
gritando mais que a torcida do Internacional, correu em massa para a mansão da
Rainha, na Vicente da Fontoura, aos berros de: Pierrot! Pierrot! Pierrot!
Jorge,
solitário na sacada, pensava: - Felizes
Gênios, feliz Lentilhinha!
Mas uma
sombra triste escureceu-lhe o rosto ao pensar:
- Pobre Rainha, nenhuma mulher ama mais
cachorrinhos do que ela. Sobreviverá à perda de seu amado PIERROT?
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